A Festa de Odete
por
Luciano Matricardi
“A Festa de Odete aborda questões
do gênero sexual através de uma experiência compartilhada entre o ator e o
público. Dentro do armário de Odete os participantes conhecerão alguns segredos
da personagem e poderão expor os seus, se quiserem. A principal idéia é
transitar entre a ficção e a realidade, pelas questões dessa personagem
inventada, Odete, que se cruzam com os desejos e experiências do performer e do
público.”
A cena performática “A Festa de Odete” integra o público no universo
mental da personagem Odete, no dia de seu aniversário ela recebe os
espectadores como se fossem seus convidados, agradece a presença de todos e
constrói uma relação direta com o público, revelando que ali são todos
participantes de uma mesma experiência, como numa reunião, numa festa. O
espaço é composto por inúmeros vestidos, saias e sapatos, como se fosse o
próprio armário da personagem. O objetivo é discutir as relações de intimidade
e confidência, o espaço que sugere um local escondido, onde ninguém poderá ser
visto, indica esse universo de segredos escondidos, como na expressão popular:
“ele está no armário”. A interação se acentua através de uma televisão que
exibe imagens simultâneas do quarto de Odete, ali ela leva um de seus
convidados para maquiá-la enquanto compartilha segredos. As primeiras sequências, exibidas pela
televisão, criam uma espécie de distanciamento dos outros espectadores com a
personagem, o público está protegido da interação com aquela figura, o que
paradoxalmente, também gera uma certa intimidade, pois através da ficção, quem
assiste se sente um pouco incluído na história, semelhante ao processo de
identificação que se dá nas novelas televisivas. Relações secretas que se
desenvolvem com pessoas ficcionais.
Devidamente maquiada e preparada (com a ajuda do público), Odete serve
frutas e legumes aos participantes, esses são os quitutes de sua festa. Ela
satiriza o formato dos órgãos sexuais através dos alimentos, numa espécie de
brincadeira burlesca que evidencia o olhar caricato que comumente se direciona
a pessoas como ela, figuras ambíguas, travestis e transexuais que andam a
margem da sociedade.
Ela conta suas histórias, seus segredos e desejos. O que se passa na
intimidade de uma Travesti? Quais são os anseios, os sonhos, de uma figura tão
ridicularizada pela sociedade? Enquanto o público se aproxima do universo
afetivo de Odete, são projetadas sobre ela imagens de pesquisas na internet
sobre os temas de gênero e identidade sexual. Com a utilização de
palavras-chave e termos específicos as pesquisas vão sendo realizadas ao vivo
nas ferramentas de busca da internet. O objetivo é colocar uma camada
informacional sobreposta ao conteúdo que é revelado pelo performer, de maneira
que exponha os conceitos mais comuns que se têm das pessoas consideradas “desviadas”
dos paradigmas habituais.
O drama de Odete, sua crise psicológica, é ter nascido num corpo que não
lhe permite gerar filhos. Em seu imaginário, após cada relação sexual ela
engravida, mas as limitações de seu corpo masculino a fazem abortar imediatamente.
Com a revelação dos desejos de Odete, abre-se espaço para que o próprio ator
exponha alguma intimidade ou conflitos pessoais, transitando entre
ator/performer e personagem. Em seguida, o público também é convidado a
participar com depoimentos e segredos particulares. Nesse contexto de
participação e envolvimento coletivo inicia-se o cortejo de morte do bebê
imaginário de Odete, como num processo coletivo de velar e enterrar algo que se
perdeu de particular, ou algo que só podia existir na imaginação, pois no mundo
real torna-se um morto. Odete e o público velam aquilo que nunca pôde existir.
Assim também são enterrados os segredos e perdas do ator/performer, que propõe
junto do enterro fictício a perda real de sua inocência. Ao final os participantes
também são convidados a enterrar suas perdas, frustrações, desejos...
O procedimento artístico busca maneiras de conectar os indivíduos e
trazer discussões que pouco se fazem na coletividade, temas que ainda são
considerados marginais ou anormais, visto pelas pesquisas na internet que
mostram o travesti sempre de maneira sexualizante ou anormal. As
questões da coletividade foram de certa forma inspiradas pelo trabalho do
artista multimídia Jeremy Deller. Muito de seu trabalho é colaborativo, sua
obra tem um aspecto político forte, os assuntos tratados e também a
desvalorização do ego artístico através da participação de outras pessoas no
processo criativo. Pertencendo à geração de artistas que se afirmou na década
de 1990, Jeremy Deller tem, desde então, trabalhado como artista, curador,
produtor e diretor de um conjunto variado de projetos, incluindo a produção de
filmes, publicações, pôsteres e anúncios. O artista já fez festival de música,
desfile de rua e uma série trabalhos que contam com a mobilização de grupos de
pessoas. Na 29ª Bienal de São Paulo apresentou um trabalho que abordava o
contraste entre a figura do transgereno em ambiente tipicamente machista e
repressor. A videoinstalação "So Many Ways to Hurt You: The Life and Times
of Adrian Street" (tantas maneiras de te machucar: a vida e o tempo de
Adrian Street) é a partir de fotografias em preto e branco de 1973 que registra
a visita de Adrian, profissional de luta livre caracterizado como um
transexual, que, ex-minerador, vai à mina onde trabalhava para ser fotografado
ao lado de seu pai, também minerador.
Assim
como nas obras de Deller, a arte deve construir narrativas que não correspondam
aos modelos de representações dominantes e normativos que hoje temos imutáveis
em relação às questões de gênero, sexo e sexualidade, reflexo de uma
homogeneização cultural e social. A “Festa de Odete” é o ambiente do corpo e espaço
deformados e reconstruídos. No universo particular compartilhado, na transição
entre a ficção-narrativa e a realidade. Em discussões direcionadas às novas
linguagens artísticas e tecnológicas que pretendem desnormatizar as
representações de gênero e sexualidade.
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